2 de dez. de 2008

O Blues caiu no Samba (e o Samba ficou azul)


O que teria acontecido naquele periodo da historia - final do seculo XIX e primeiras décadas do século XX - se, invertendo-se os dados, Charlie Patton, Blind Lemmon Jefferson, Son House, Leroy Carr e Robert Johnson tivessem nascido e crescido no Brasil, enquanto que, por outro lado, Joao da Baiana, Donga, Pixinguinha, Sinho e Heitor dos Prazeres tivessem nascido e crescido nos Estados Unidos da América?

Nao requer tanto esforço de imaginaçao para se supor que, em virtude dos dotes artisticos dos ilustres senhores, da comum ascendencia africana e respectivo patrimonio genético-cultural, além da condiçao social à qual estavam necessariamente vinculados no continente americano, do norte ao sul, enquanto raça descriminada, hà algumas décadas apenas liberada da escravidao, com toda probabilidade, os cinco primeiros teriam se tornado sambistas, pioneiros do genero de maior peso na formaçao da identidade musical brasileira: o Samba, enquantio que os outros cinco, por sua vez, teriam se tornado bluesmen, analogamente, inventores do genero que constitui a raiz mais original e determinante da identidade musical norte-americana (estadonidense): o Blues.

Isto provavelmente teria acontecido, a menos que tivessem sido os ingleses a colonizar o Brasil e vice-versa, os portugueses os Estados Unidos, e mesmo assim, talvez fosse ainda necessario que, por obra de alguma estripulia do eixo da terra, tivesse sido totalmente invertida a geografia do nosso planeta, cosiderando a importante influencia de fatores climaticos no desenvolvimento de uma cultura.

Em suma, é claro que é o contexto cultural, com toda a sua complexidade de fatores; ecologico, socio-politico, economico e no caso especifico da musica, especialmente no periodo historico em questao, do fator religioso, sobretudo aquele relacionado a religiao oficial, a condicionar o produto cultural de uma sociedade.

O estratagema proposto acima deve servir apenas para ilustrar o tema de um interessante paralelo que se pode traçar entre o Samba e o Blues, como jà mencionado, respectivamente as matrizes mais basicas e fundamentais das identidades musicais brasileiras e americanas, duas culturas que, pelas suas imponentes dimensoes, nao apenas territoriais, mas principalmente em relaçao a diversidade de elementos e caracteristicas de formaçao (com tanto de melting pot), inegavelmente foram pela maior parte do século XX - e continuam a ser - as culturas musicais que maior influencia tem exercido no mundo moderno, numa época caracterizada pela progressiva fusao e interaçao cultural (musica popular e musica erudita, por exemplo), em consequencia do desenvolvimento dos meios de comunicaçao, particularmente do advento da industria fonografica, do radio, da televisao e da internet.

Embora analogos em tantos aspectos, como, em ùltima analise, podem ser analogas as historias do Brasil e dos Estados Unidos, o Samba e o Blues na realidade se distiguem por elementos musicais um tanto diferentes. O Samba é acima de tudo um ritmo, enquanto que o Blues é principalmente um fato melodico, uma harmonia, na concepçao pitagorica do termo. De fato, originalmente nao se pode identificar uma linguagem melodica ou harmonica (entendida como acordes) no Samba tao bem definida quanto no Blues, que chegou a produzir uma escala inédita (em relaçao à cultura musical de tradiçao europeia), caracterizada pelo inconfundivel efeito da "blue note".

Outra caracteristica distintiva no Blues é a progressao de acordes, perfeitamente inserida na concepçao tonal da tradiçao europeia - as areas harmonicas de dominante e subdominante gravitando em torno a um centro tonal - porem com a diferença marcante de uma constante tensao produzida pelo uso generalizado do acorde de setima da dominante em todas as tres areas harmonicas, ou seja, um efeito de tensao que permanece mesmo no estado de repouso do acorde de tonica.

Esses traços fortemente distintivos do Blues, fazem com que a sua impressao seja facilmente reconhecida onde quer que venham a ser adotados, qualquer que seja o ritmo ou o genero de musica em questao.

O Samba, cujo principal elemento distintivo é o ritmo, no plano melodico/harmonico, assim como o Blues, tambem inicia o seu desenvolvimento a partir da assimilaçao dos componentes rudimentares da tradiçao musical europeia - no caso do Brasil, através de sua variante predominantemente lusitana - mas, à parte o ritmo, o Samba nao chegou a produzir algo tao distintivo quanto o Blues. Por outro lado, a complexidade ritmica que dele pode ser derivada, eventualmente permitirà que uma verdadeira linguagem ritmica/melodica/harmonica se desenvolva e que restarà como traço definitivo da identidade musical brasileira.

Desde o seu nascimento, nas primeiras décadas do século XX, o Samba flertou com os novos ingredientes harmonicos e melodicos oriundos do Blues, num processo gradual de interaçao mais ou menos bilateral, naturalmente de acordo com os diversos momentos da conjuntura historica e social. A questao chegou a ser discutida em letra de musica, como no caso de "Chiclete com Banana", de Gordurinha e Almira Castilho, lançada por Jackson do Pandeiro na década de 1950.

E', porem, no momento sucessivo da historia, por volta da segunda metade do século XX, quando o samba se funde definitivamente ao Jazz (derivado do Blues), assimilando organicamente formas e estruturas, dando origem ao que se convencionou chamar Bossa Nova, que se desenvolve propriamente uma linguagem melodica e harmonica com caracteristicas originais brasileiras.

Alem das blue notes e acordes de sétima da dominante (tipicos do Blues), outras notas de tensao ou alteradas entram nas melodias (Se voce disser que eu desafino amor...), harmonizadas adequadamente, com tanto de tensao e alteraçao, tudo isto mesclado à caracteristica complexidade ritmica do Samba, àquela altura promovido a genero de unidade nacional, vetor de uma rica ancestralidade e do enorme patrimonio folclorico gerado pelas diversas regioes brasileiras, onde entra com peso especial o Nordeste do pais.

Nessa perspectiva de criaçao de uma identidade musical brasileira, unificada, palpavel e contemporanea, fundamental é o legado de Heitor Villa-Lobos, uma especie de chave para se penetrar em profundidade na Terra Brasilis. Esta chave serà essencial no desenvolvimento do trabalho de Antonio Carlos "Tom" Jobim, apenas para citar aqui o musico compositor, que, com a sua obra deixarà definitivamente impresso o selo da modernidade na musica brasileira, conferindo-lhe um de seus traços mais distintivos, que a lançarà na linha de frente do "mercado" da aldeia global e que tambem, afinal, levou o Blues (através de sua descendencia mais evoluida, o Jazz) a cair no Samba...

Texto que escrevi sob solicitaçao do amigo poeta de Natal, Carlos Gurgel, para a revista BROUHAHA da Fundaçao Capitania das Artes (Natal, RN), publicado na ediçao de Abril/Junho de 2006.




Um comentário:

Gabriel dos Santos Lima Harrison disse...

ótimo artigo! Impérios vêm e vão, mas o Blues é eterno! "Them charcoal gypsy maidens
Can strut their feathers well
But nobody can sing the blues like Blind Willie McTell" - Bob Dylan - Blind Willie Mc' Tell (acabei de adicionar o blog à minha pag. de favoritos!!!)